Roteiro nasceu de peça teatral
Uli Burti, Marcos Cesana e Hermano Penna em Gramado
Ator, dramaturgo e roteirista, Marcos Cesana é autor do texto original de Olho de Boi, vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no 35° Festival de Cinema de Gramado, em 2007. Mais que roteirista, foi Cesana quem concebeu o universo em que Modesto e Cirineu, protagonistas de Olho de Boi, vivem sua tragédia. Ator de prestígio, Cesana é versátil e transita com desenvoltura em várias áreas criativas. Atualmente, Cesana pode ser visto no cinema em seu impecável papel do garçon Gilson em Chega de Saudade, filme de Laís Bodanzky. No teatro, esteve em cartaz com A Festa de Abigail, no Teatro Procópio Ferreira e ensaia sua próxima participação nos palcos em A Boa Alma de Setsuan, de Bertold Brecht, ao lado de Denise Fraga e direção de Marco Antonio Braz, com quem também assina a adaptação do texto. Estreou na TV com o seriado 9 mm, produção da Fox sobre o cotidiano de uma delegacia de homicídios em São Paulo. Versátil, Cesana também já tem preparado um novo livro. “É um romance policial sobre a história de um serial killer que só mata mulheres que compram demais e desfilam com aquelas incontáveis sacolas. Tem muito humor, mas também é minha crítica aos tempos em que vivemos. Consumir se tornou algo muito importante. E a cultura se vulgarizou de certa forma”, comenta.
Como e quando começou a história de Olho de Boi?
Na verdade, tudo começou no teatro, ainda nos anos 90. Escrevi a peça, que originalmente se chama Braço do Diabo. Ela acabou sendo montada, com direção da Maria Lucia Pereira, com o nome de Desamparo, entre 1997 e 1998. Esta é uma história que nasceu de uma forma muito intuitiva. Um dia eu estava tomando café da manhã em casa quando a seguinte frase me veio à mente: “Quero ver o poeirão levantar quando o corpo do diabo cair”. Fiquei com aquela frase na cabeça. E pensei: “Aí tem potencial. Pode virar um texto”. E acabei escrevendo pensando nisso. Nisso e na relação entre dois homens, no caso a relação entre pai e filho. Queria tratar da paternidade, de um universo masculino, que tem não só elementos de Édipo Rei como de Othelo. A traição em Olho de Boi é algo muito forte também.
Este universo entre pai e filho, mesmo que não seja a relação óbvia e comum, é algo que você costuma gostar de tratar?
Não há como negar que a relação entre pai e filho é muito inspiradora. Há grandes dramas que foram escritos sobre este assunto. Eu sempre tive a sorte de ter uma relação muito boa com meu pai, que já faleceu. Não uma relação conflituosa, de mágoas, raiva e rancor, mas uma relação forte de amor. Só de amor. Ao mesmo tempo, tenho uma relação ótima com meu filho, de 12 anos. E isso é tão importante na minha vida. Ao mesmo tempo, sempre pensei em como é a vida de quem não tem esta relação boa com pai e filho como eu tenho. Sempre pensei no drama de quem não tem este amparo. Foi pensando muito nisso que também escrevi este texto.
O desamparo não surge por acaso nesta história que também fala de fé e da existência de Deus, não?
Exatamente. Este é um filme que também fala da existência ou não de Deus. Esta questão nietzscheana sobre se Deus está morto ou não. Há vários elementos mais, digamos, filosóficos nesta história que trata também do Brasil profundo, do brasileiro que mora nestes lugares ermos.
"Queria tratar de um universo que tem
elementos de Édipo Rei e de Othelo"
Daí a natural associação de Olho de Boi ao universo da obra de Guimarães Rosa?
Sim. Eu sou grande admirador de Rosa. Seus livros e seus personagens sempre foram grande fonte de inspiração para mim. Ambientar esta história em um universo tão especial quanto os rincões do Brasil foi algo muito interessante. Eu também sou um grande fã dos westerns de Sergio Leone. Há um filme dele cujo começo jamais esqueço: Era Uma Vez no Oeste. Nesta primeira seqüência do filme, o cowboy também está em um lugar no meio do nada, sentado em uma mesa, só esperando. Uma mosca aparece e ele prende esta mosca com o cano do revólver. Há um corte para uma locomotiva. E o Charles Bronson aparece na tela. Em Olho de Boi, há a primeira cena do matadouro. E, em seguida, o corte para a chuva e o trovão. Este é um universo que me fascina e me inspira.
Este é um universo com o qual você tem familiaridade?
De certa forma, é sim. Eu morei por dois anos e meio em uma cidade chamada Clementina, perto de Araçatuba, no interior paulista. Lá eu pude ter contato com este universo rural. Uma das experiências que mais me impressionaram foi uma visita que eu fiz a um abatedouro local. Até hoje as imagens me vêm à mente. Observar a forma como os bois vão para o abate me marcou muito. O primeiro boi vai para o sacrifício e solta aquele gemido profundo. O segundo boi se dá conta do que vai acontecer com ele. E resiste bravamente. Ele se debate, luta, recusa-se a ir para a morte. Até que se dá conta de que é inevitável. E morre. Do terceiro boi em diante todos vão resignados, em silêncio, literalmente de cabeça baixa. É a própria consciência trágica diante de um destino inevitável. Este universo é muito rico e fascinante.
Como foi o trabalho de transpor este universo teatral para a linguagem cinematográfica? Como surgiu a idéia de criar um roteiro a partir da peça?
Foi um trabalho difícil, mas gratificante. A idéia de levar a peça para a tela surgiu com um concurso de roteiros de Baixo Orçamento, em 2004. A peça, por exemplo, não começava na igreja. Nem havia igreja na peça, que também quase se chamou No Descampado das Almas. Era só a ação entre dois homens que estavam de tocaia esperando um terceiro. No filme, a solução de começar tudo dentro da igreja abandonada foi perfeita. Antes de escrever o roteiro, transformei a peça em um conto. E, então, passei a trabalhar o texto para o cinema. Escrevi pensando que eu e o Wolney de Assis, grande amigo meu e parceiro de trabalho, podíamos filmá-la. O Wolney me apresentou ao Hermano Penna. E foi a melhor coisa a ser feita. Hermano preservou muito do texto original. A essência está na tela.
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